de inventione dei

Nos começos do maio de 2016, enquanto almoçava um café na cozinha, entrou pela janela um raio de sol e na minha mente um nome foi sussurrado: Lourenço. No folclore peninsular, Lourenço é o nome que recebe a personificação do Sol junto a Catarina, a Lua. Começou então para mim um caminho de reflexão e de interpretação de quem era, quem devia ser, esse Lourenço, essa figura que me chamou a descobri-la.

O sol chama-se Lourenço
e a lua Catarina;
Catarina anda de noite
e Lourenço anda de dia.
Alumia-me, luinha,
alumia-me, luar;
alumia-me de noite
de dia vai descansar.

                      cantiga popular galega

A ligação com uma divindade solar é evidente, não só no folclórico, mas também no histórico. Lourenço, ‘coroado de loureiro’, fai referência ao génio vegetal associado a Apolo, o deus solar por excelência do mundo greco-latino. Apolo, contudo, não pode ser visto como só um deus. Apolo não se entende, não pode ser explicado, sem ver as relações binárias que se estabelecem na mitologia com outras figuras que completam uma versão complexa da divindade masculina: Dioniso e Hermes.

A relação com Dioniso é de sobra conhecida, estabelecida ao longo do romantismo alemão e concretizada n’O nascimento da tragédia de Nietzsche. Dous princípios opostos em equilíbrio igualmente necessários: por um lado o apolíneo, o princípio ordenador, político, civilizador, formador; por outro o dionisíaco, o princípio caótico, extático, selvagem, grotesco. Apolo é usualmente chamado o deus grego por excelência, pois encerra em si as características com que a Grécia clássica se identificou e passou à História: o povo filósofo que através da razão soubo domesticar a terra e o mundo, criador de inumeráveis artes e ciências e de um cânone que fundamenta o ideal humanista até hoje. Porém, sabemos e devemos lembrar que tão espelho da Grécia foi Apolo quanto o foi Dioniso: uma sociedade marcada pelo patetismo na sua arte, marcada polo rito, os cultos mistéricos e os sacrifícios necessários para o seu bom funcionamento; uma sociedade sabedora da importância de romper o estabelecido para renovar os pactos e poder assim continuar.

Apolo
Hermes
Dioniso

A relação com Hermes é já menos evidente, se bem palpável de jeito constante através do modo em que os deuses se relacionam. Não em vão, quando Mercúrio aparece no firmamento na manhã é Apolo que anuncia o esplendor da verdade ordenada; mas quando Mercúrio aparece ao sol-pôr é Hermes que traz a noite arteira. Hermes é, como é sabido, o deus mensageiro, o senhor dos caminhos e da encruzilhada; mas é também o equilíbrio nocturno de Apolo. Não é o êxtase dionisíaco, mas o deus torcido que prova Apolo, como se mostra no mito do roubo do gado. A faceta de Hermes como deus do umbral, mensageiro do Aquém e do Além, é fundamental para entender o seu papel na tríade com Apolo e Dioniso; pois Hermes tem um pé em cada mundo, a um e outro lado do cerco. Hermes permite mediar entre ambos os princípios é quem ajuda Apolo no seu afã ordenador mas sem renunciar aos caminhos torcidos, precisos para lembrar que não só a luz outorga verdade.


Esta complexidade estrutural tríplice não se acha de igual forma representada noutras mitologias irmãs, mas é possível ver que está presente nelas. Ao final, o Mercúrio grego partilha nome com o Mercúrio germânico e com o Mercúrio celta por algum motivo: esta função liminar entre a ordem e o caos.

Quando falamos do Mercúrio germânico, falamos de Odin, senhor dos deuses Ásir, senhor da guerra, da morte e dos seus caminhos; da magia, a sabedoria e a poesia; de quem governa a lei e de quem a transgride. Como Apolo é deus ordenador, pois é chefe dos deuses, mas é também um deus extático, um deus xamã (não entraremos neste artigo a afundar na relação cultural mágica entre os povos nórdicos germânicos e saami). É o deus bruxo que se sacrifica para conhecer os caminhos da Arte, que paga com um seu olho para poder ver e que voa como troca-formas para vagar pelo mundo. Odin forma par com Loki por vezes complemento, por vezes antagonista , o deus arteiro que desordena o mundo dos mortais e dos deuses; relação esta que se nos fixamos apresenta paralelismo na função simbólica com a tríade grega.

Odin acompanhado de Hugin e Munin
Lugos acompanhado de dous corvos

Quando falamos do Mercúrio celta, falamos de Lugos, o brilhante, senhor do sol sem função mas que destaca, dentre todas as cousas, como senhor das artes e da magia magia que usa, casualmente, a piscar um olho. Lugos é um deus complexo, pois não se ajusta à estamentada sociedade celta: não tem função sacerdotal, não tem função bélica e não tem função artesanal, e contudo é deus bruxo, deus guerreiro e deus artesão. Lugos é também um deus das transições: como guerreiro novo é deus da maturidade e como divindade solar é deus da morte e do nascimento, assim como o Sol morre no sol-pôr e nasce no amanhecer.


Lugos apresenta também uma figura escura (neste caso não só no simbólico mas no documental): Cernunnos. A relação entre Lugos e Cernunnos seria equiparável àquela entre Apolo e Dioniso no mundo celta, mas há quem sugira que não seriam divindades distintas senão diferentes etapas do desenvolvimento do mito. A problemática neste caso é evidente: os celtas eram povos deliberadamente ágrafos em boa parte da sua história e com pouca coesão político-cultural em comparação com germânicos, latinos ou gregos. Por este motivo não conservamos fontes primárias da prática ritual ou da cosmovisão mitológica dos povos celtas continentais e só versões mui serôdias e cristianizadas dos insulares.

O deus Lugos foi cristianizado sob o nome de São Lourenço. Isto é algo que se adivinha não só no nome de paralelismo evidente, mas nas datas de celebração do santo mártir e no uso deste nome para falar do Sol, e a pesar disto não é a figura que mais destaca entre nós. O 25 de julho celebra-se por todo o país o início das festas de verão associadas à agricultura conhecidas no neopaganismo como Lughnassad. O 25 de julho, dia nacional da Galiza, é Santiago Apóstolo.

Galiza é um país em que as três camadas analisadas (celta, greco-latina e germânica) fôrom deixando a sua pegada não só através da visão popular de Lourenço como sol, mas especialmente com a veneração da figura de Santiago Apóstolo. Santiago é uma figura de três idades: é novo e batalhador, é maduro e regente e é velho e peregrino. Santiago é o senhor do Caminho que leva a Compostela, a necrópole nos confins da Terra perante o mar Oceano que leva ao mundo dos mortos. A camada que se deixa ver com mais força semelha evidente, um Odin cristianizado. Se bem aí estão todos eles: os Mercúrios, a divindade acumulada nesta terra.

Odin sobre Sleipnir
Santiago no seu cavalo branco

Assim chegamos ao final desta viagem em que descobrimos que atrás de Santiago está Lourenço e atrás deste Lugos, Odin, Apolo e tantos outros. Descobrimos que é a centelha divina de todos os deuses que antes lhe fôrom. Quem rege o dia e a noite; as artes e a magia; a vida e a morte; a ordem e a desordem; e os caminhos todos que as conectam.


Algumas leituras de referência
Nietzsche, Frederich. O nascimento da tragédia.
Apolo y Hermes. Instituto Internacional Hermes.
The one-eyd All-Father. Historiska.

Lugos and Gaulish Mercury. We are Star Stuff.

Concerning Cernunnos Part 3: Cernunnos and Lugh; Nature and Culture. Musings from Gelli Fach.

Deixa unha resposta

O teu enderezo electrónico non se publicará Os campos obrigatorios están marcados con *